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FILOSOFIA E FORMAÇÃO HUMANA

FILOSOFIA E FORMAÇÃO HUMANA

FILOSOFIA E FORMAÇÃO HUMANA.

 

 

 

Introdução.

   Nos últimos anos tem havido análises, estudos, debates, posicionamentos e publicações a respeito da relação da Filosofia com a Educação. Três aspectos têm sido evidenciados em tal relação: filosofia como processo de reflexão que pensa a educação e que busca sentidos ou significados para a ação educativa; filosofia como conteúdo necessário na formação dos educadores; filosofia como componente necessário na formação de crianças e jovens. Nos dois últimos chama a atenção a idéia de formação, tanto a idéia em si mesma, quanto a idéia do papel formativo da filosofia. Há duas questões aqui: o que entender por formação humana que inclui a idéia de educação como formação e como entender o papel formativo – educativo - da Filosofia.

   Nos estudos que desenvolvemos nos colocamos ambas as questões. A primeira, por necessidade de configurar e reconfigurar continuamente nossos entendimentos sobre o processo educativo chamando, para tal, os aportes da Filosofia além dos das Ciências. Ambos são constitutivos do campo teórico da educação. A segunda, pela necessidade de esclarecimentos sobre o papel formativo da Filosofia. A busca por esclarecimentos sobre o papel formativo da Filosofia insere-se numa busca mais ampla: a da compreensão do campo de estudos e pesquisas da Filosofia da Educação.

   Na linha de pesquisa da qual participam os autores deste texto e nas leituras e análises feitas chamaram atenção do grupo abordagens a respeito da expressão formação humana quase sempre utilizada para indicar o próprio processo educativo. Um dos autores brasileiros que utiliza com freqüência a expressão é Antônio Joaquim Severino. A partir de seus textos foram desenvolvidas reflexões a respeito e iniciadas buscas em outros pensadores.

   Um dos objetivos da apresentação deste trabalho é promover debates sobre o tema que possam ajudar na sua elucidação e colher outros subsídios para a continuidade da pesquisa. 

 

Formação

   Formação tem a ver com formar, com forma. Processo ou conjunto de ações ou de procedimentos que dão forma. Processo constitutivo de uma configuração. O verbo constituir apresenta-se, amiúde, quando se pensa em formação. É dar forma a algo. No caso dos seres humanos pode-se e, julgamos que se deva, falar em dar-se uma forma  no conjunto das relações humanas.

   É antiga, e permanece, a discussão sobre forma e sua noção: desde a idéia platônica de essência para se referir à “figura latente e invisível”, “só captável pela mente” (FERRATER MORA, verbete Forma), à qual Platão se refere com a palavra eidos, passando pela noção aristotélica de forma como a essência necessária e que se distingue da matéria, mas que juntamente com ela configura algo; até certas posições que dirão que a forma é a própria essência já dada aos seres e que provém de algum poder a eles externo. Nessa visão as formas já estariam dadas a priori e, aos seres, competiria realizá-las na sua temporalidade como com-formações. A idéia de conformação possibilitou muitos caminhos indicativos de constituição - de formação -  das pessoas. Se a forma é previamente dada, resta conformar-se ou ser conformado. Um tal entendimento gerou e tem gerado reprováveis autoritarismos pedagógicos.

   Em abordagem diversa, a forma é vista como resultante da constituição dos seres a qual ocorre no conjunto de relações que se dão na natureza, na sociedade e historicamente: sem que haja planos aprioristicamente dados e sem a idéia de essências ou de formas determinantes do real, como o querem as posturas essencialistas. Em contraposição a estas últimas, afirma-se a constituição histórica da maneira humana de ser.

   Estas posturas estão, de algum modo, presentes nos mais variados discursos, inclusive nos discursos pedagógicos. Como pensar, diante delas, a “forma humana”? Há uma forma humana? Há uma essência humana? Ou uma natureza humana? Ou dever-se-á falar em condição humana que se vai constituindo historicamente? O que é formação humana?

   É freqüente dizer-se que educação é processo de formação humana. Um processo de constituição da humanidade dos humanos? Ou um processo de constituição da humanidade nos humanos? Se a primeira, a humanidade dos humanos é construída na própria prática humana do existir; se a segunda haveria uma humanidade a ser realizada em cada ser humano. Estas questões trazem ainda uma outra: o que é mesmo ser humano? O que é mesmo humanidade? E, por certo, daí decorrente, uma outra: seres humanos devem ser formados? Devem ser constituídos como tais? Se sim, em que consiste o processo de sua formação? Há uma profunda relação da Antropologia Filosófica com a Educação.

 

Filosofia e formação humana.

   No âmbito da Filosofia não são raras reflexões sobre a educação vista, com freqüência, como formação. Kant, por exemplo, dedica um texto sobre a educação: “Ueber Paedagogie”  traduzido no Brasil com o título: Sobre a Pedagogia (1996). Neste texto podem ser encontradas afirmações reveladoras de uma concepção predominante de educação e de formação humana até os dias de hoje.

   “Nascemos humanos, mas isso não basta: temos também que chegar a sê-lo”, diz um autor do nosso tempo. (SAVATER, 1998, p. 29). E diz mais: “A condição humana é em parte espontaneidade natural, mas também deliberação artificial: chegar a ser totalmente humano – seja humano bom ou humano mau – é sempre uma arte.”(idem, p. 31). Assemelha-se a idéias de Kant. No início de Sobre a Pedagogia lê-se: “O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação.” (KANT, 1996, p. 11). Mais à frente diz: “O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” (KANT, 1996, p. 15).

   Nessa perspectiva o ser humano precisa da educação, pois é ela que o faz humano: a educação o forma; ela o constitui como humano. Kant insiste na idéia de se dar uma forma conveniente ao humano: “É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação e que é possível chegar a dar aquela forma que em verdade convém à humanidade.” (1996, p. 17).

  Que forma convém ao ser humano? Haveria uma fôrma à qual se devem submeter ou conformar os que nascem para que desenvolvam seus “germes” de humanidade a um ponto de conveniência? Conveniência para quem?  Kant fala mesmo em germes: “Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver, em proporção adequada, as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o homem atinja sua destinação.” (KANT, 1996, p. 18). Estes germes não são destinatários do mal, pois, “no homem não há germes, senão para o bem” (idem, p. 24). Cumpre à educação, a esta arte nada fácil e que deve ser constantemente aperfeiçoada (p. 19), canalizá-los para o bem. Desvios poderá haver, mas se devem à falta de uma educação conveniente. Uma educação conveniente é aquela que inclui o cuidado, a disciplina e a instrução com formação, como já apontado acima. Kant reitera a necessidade destes três aspectos no processo educativo ao longo de sua exposição e os explicita de diversas maneiras.

   Consideremos o que diz sobre formação. “O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a disciplina e a instrução.” (1996, p. 14) e ela, a formação, é:

 

1) Negativa, isto é, disciplina, a qual impede os defeitos; 2) positiva, isto é, instrução e direcionamento e, sob este aspecto, pertence à cultura. O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi ensinado. Daqui nasce a diferença entre o professor, o qual é simplesmente um mestre, e o governante, o qual é um guia. O primeiro ministra a educação da escola; o segundo, a da vida. (KANT, 1996, p. 30-31). (Os itálicos constam no original). [1]

 

   A formação humana, para Kant, inclui a disciplina que é negativa porque “impede ao homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se de sua humanidade” (idem, p. 12); e inclui a instrução ou a cultura – “pois que assim pode ser chamada a instrução” (idem, p. 16). “Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem.” (idem, p. 16). Para ele a cultura abrange a instrução e vários conhecimentos e talvez, por essa razão, ela envolve um trabalho professoral de informação, que ele denomina também de escolástico e de direção, de governança ou de guia para a vida. Tudo isto é formação humana, ou educação, para Kant. A formação humana torna o homem humano. A formação é constituidora da humanidade no humano. Há germes de humanidade que é necessário desenvolver de certa maneira: cultivar na direção da realização da humanidade. “A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais que pertencem à humanidade.” (KANT, 1996, p. 12).

   Mas qual humanidade? Há uma em especial, já definida? Sim e não: há uma nos germes de humanidade; mas há fins humanos que devem ser construídos nas “circunstâncias”. “A cultura é a criação da habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejemos. Ela, portanto, não determina por si mesma nenhum fim, mas deixa esse cuidado às circunstâncias.” (idem, p. 26). Como assim? - podemos nos perguntar. Talvez Kant aposte na inexorabilidade da Razão que apresenta os fins para quem se desenvolve ou supera a minoridade de que fala em Que é isto a Ilustração.  “Bons são aqueles fins que são aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.” (KANT, 1996, p. 27). 

   Não é fácil esta tarefa de definição dos fins, mas esta é a obrigação da humanidade. Os seres humanos, diferentemente dos animais, que cumprem destinos sem o saber, são obrigados “a tentar conseguir o seu fim; o que ele (o ser humano) não pode fazer sem antes ter dele um conceito.” (idem, p. 18). Ter um conceito aprovado por todos e que seja o de cada um. A Razão indica a forma de ser gente e o caminho da formação.

   Se tomarmos as idéias de Rousseau (1995), veremos nelas um projeto educativo de formação humana que nada mais é que um projeto de desenvolvimento das disposições naturais (dos germes naturais de humanidade dos quais falava Kant?) e ao mesmo tempo um projeto de formação do homem social, do cidadão. Um projeto que se realiza nas circunstâncias  como  Kant fala?

   Ou a formação humana, na verdade, é uma construção coletiva e histórica nos termos em que Marx e Engels a colocam, por exemplo, na Ideologia Alemã e que ocorre a partir de elementos naturais dados, mas que se realiza nas relações de produção da vida, pelo trabalho?

   “O pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza.” (MARX-ENGELS, 1979, p. 27). Esta organização corporal condiciona, por sua vez, aquilo que diferenciará os “homens dos animais, isto é, a produção dos seus meios de vida. (idem, p, 27). “O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.” (idem, p. 28).

   Marx e Engels (1979) apontam os caminhos da realização humana nestas condições históricas: um primeiro momento deste caminho, “primeiro ato histórico” (p. 39), é o da produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades de “comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais” (p. 39). Ato este, aliás, dizem eles que “deve ser cumprido todos os dias e todas as horas”. (idem, p. 39). A satisfação destas necessidades básicas conduz a novas necessidades  que são cada vez mais ampliadas até por conta do processo de procriação que obriga os homens a um trabalho não só para a manutenção de cada vida individual, mas para a vida de todos. Decorre daí o processo de produção coletiva da vida que adquire as mais diversas formas historicamente. Os seres humanos vivem e formam-se como humanos no trabalho, ou seja, nas relações de produção que implicam em relações sociais. É no conjunto de tais relações que se constata, ou se verifica “que o homem tem consciência” e que ela “é desde o início um produto social”. (idem, p. 43). Daí afirmarem os autores: “Vê-se aqui que os indivíduos fazem-se uns aos outros, tanto física como espiritualmente, mas não se fazem a si mesmos.” (idem, p. 55). A formação humana se dá nas relações que os seres humanos estabelecem, uns aos outros se fazendo, mas ninguém se fazendo sozinho, solitariamente. A formação humana, nesta perspectiva, é solidária: ela se dá nas interações sociais que incluem necessariamente as relações produtivas. Estas interações sociais incluem a transmissão, para as novas gerações, “de uma soma de forças de produção” e de uma “relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos” que,  “embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter especial. Mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias.” (MARX e ENGELS, 1979, p. 56).

   Kant fala de uma humanidade definida nos “germes de humanidade” e, ao mesmo tempo de uma humanidade a ser construída, quanto aos seus fins, nas “circunstâncias”. Indica, também, fins humanos definidos pela Razão. Marx e Engels apontam as circunstâncias como constituidoras dos humanos, mas circunstâncias constituídas, elas mesmas pelos próprios humanos nas relações que estabelecem com a natureza e entre si.

   É importante constatar que, na tradição do materialismo histórico dialético, as circunstâncias, ou o conjunto das relações de produção, podem ser benéficas ou maléficas para a constituição de humanos: para a sua formação. Daí ser importante, também, perguntar: como avaliar as circunstâncias? Quais os critérios para a definição do que é benéfico ou maléfico para a humanização do humano? O que é mesmo bom para a formação humana? O que é mesmo um bom humano? O que é formação humana boa? A pergunta inicial aqui se amplia: não apenas o que é formação humana, mas o que é formação humana boa. Isto remete à questão antropológica básica: o que é o humano? Trabalhar filosoficamente esta questão é uma das principais contribuições da Filosofia para a Educação. No campo temático da Filosofia da Educação a principal pergunta é a que diz respeito ao ser humano e ao significado de sua existência.

 

(...) de um ponto de vista mais fundante, pode-se dizer que cabe à filosofia da educação a construção de uma imagem do homem. (...) Trata-se do esforço com vista ao delineamento do sentido mais concreto da existência humana. (...) Como tal, a filosofia da educação constitui-se como antropologia filosófica. (SEVERINO, 1990, p. 21).

 

    Não uma antropologia abstrata ou metafísica, mas “uma antropologia filosófica capaz de apreender o homem existindo sob mediações histórico-sociais, sendo visto então como ser eminentemente histórico e social.” (idem, 1990, p. 21). 

   Esta mesma idéia é retomada por Severino em 2001. A Filosofia da Educação deve ser entendida como “uma elaboração com vistas à elucidação radical do sentido da educação” no contexto da existência humana. (p.119). Este é o primeiro e grande tema da investigação da Filosofia da Educação que, “desse ponto de vista (...) é fundamentalmente uma antropologia, pois toda significação possível da educação está atrelada à da existência humana na sua integralidade.” (idem, p. 119).

   Numa insistência que parece denunciar um esquecimento imperdoável da dimensão antropológica em muitas abordagens da Filosofia da Educação, Severino reitera este ponto de vista em 2004, em nova publicação:

 

... impõe-se à Filosofia da Educação a construção de uma imagem do homem como sujeito fundamental envolvido na educação. Trata-se de delinear o sentido mais concreto da existência humana com relação às suas coordenadas de educabilidade. Como tal, a Filosofia da Educação constitui-se como uma antropologia filosófica, entendida como tentativa de construção de uma visão integrada do ser humano. (SEVERINO, 2004 p. 31).

 

   É a partir destas premissas que Severino pode falar, também, em formação humana. Ele se pergunta: “O que vem a ser essa formação?” (SEVERINO, 2002, p. 185). É o desenvolvimento das pessoas como “pessoas humanas”: “Nós nos formamos quando nós nos damos conta do sentido de nossa existência, quando tomamos consciência do que viemos fazer no planeta, do porque vivemos”. (idem, p. 185). Esta tomada de consciência é o que ele denomina de dimensão subjetiva que exige o desenvolvimento de sensibilidades que a constituem: a sensibilidade epistêmica, a sensibilidade aos valores morais (consciência ética), a sensibilidade aos valores estéticos (consciência estética) e a sensibilidade aos valores políticos (consciência social).

 

É toda esta esfera do exercício da dimensão subjetiva da pessoa que nos torna efetivamente humanos. Não bastam a integridade física, biológica, o bom funcionamento orgânico, as forças instintivas para uma adequada condução da vida humana. Sem a vivência subjetiva continuamos como qualquer outro ser vivo puramente natural, regido por leis pré-determinadas, vale dizer, sem possibilidades de escolhas, sem flexibilidade no comportamento. (SEVERINO, 2002, p. 185).   

 

      Morin (2005) acrescenta a afetividade como elemento presente na subjetividade e que revela a humanidade do homem em suas características não apenas racionais (sapiens) mas, também, emocionais que ele coloca na dimensão a que denomina de demens.

      Esta vivência subjetiva não se dá, porém, descolada das circunstâncias histórico-sociais, como também destaca Morin (2005a, p.78): o “sujeito surge para o mundo integrando-se na intersubjetividade, no seu meio de existência, sem o qual perece.” Ele não fala de formação, neste momento de seus estudos (Método 5), mas de estruturação do sujeito mediada por outros sujeitos, entendendo que a constituição do indivíduo/sujeito só ocorre na relação pessoa/pessoa: “cada vida autônoma é possuída no interior e no exterior por outras vidas” (MORIN, 2005b, p. 442). E nesse movimento a cultura permeia o contato e o convívio, inserindo a tradição e também constituindo o indivíduo/sujeito, por intermédio, principalmente da linguagem.

   Para Kant, como já indicado acima, “quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem.”  Para Morin, (2005a) “o primeiro capital humano é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo escalão.” (p. 35). No humano não há dissociação do biológico e do cultural, assim como não há dissociação do que é individual e do que é social.

 

Como não ver que o mais biológico – o nascimento, o sexo, a morte – é, ao mesmo tempo, o mais impregnado de símbolos e de cultura? Nascer, morrer, casar-se são também atos religiosos e cívicos. Nossas atividades biológicas mais elementares, comer, beber, dormir, defecar, acasalar-se estão estreitamente ligadas a normas, interdições, valores, símbolos, mitos ritos prescrições, tabus, ou seja, ao que há de mais estritamente cultural. Nossas atividades mais espirituais (refletir, meditar) estão ligadas ao cérebro, e as mais estéticas (cantar, dançar) estão ligadas ao corpo. O cérebro, pelo qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, culturais. (MORIN, 2005a, p. 53).

 

   Não só são associados na constituição do humano, mas o são de uma maneira antagônica. Diz Morin que são realidades complementares e antagônicas ao mesmo tempo: é o que ele denomina de relação dialógica. Na relação, assim dialógica, o biológico e o cultural são contrários que se necessitam e que, na relação, destroem-se e reconstroem-se mutuamente constituindo o mundo humano que é natureza e cultura ao mesmo tempo. O humano é formado nesta relação. Os seres humanos são formados e formam-se aí. A formação é um processo contínuo num devir que não termina nunca. No processo de formação humana, os indivíduos, as sociedades e a espécie estão imbricados, dirá Morin, mas não propriamente atrelados mecanicamente. Para ele “isso constitui a base da complexidade humana”. (idem, p. 52).

   O que vem mesmo a ser a formação humana que se dá em tal complexidade? Severino, em texto de 2006 retoma a questão já posta em outros textos, reitera entendimentos anteriores e os explicita ainda mais. Há como que uma construção progressiva dessa idéia de formação.

 

Mas o que vem a ser a formação? É processo do devir humano como devir humanizador, mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma pessoa. Para nos darmos conta  do sentido desta categoria, é bom lembrar que ela envolve um complexo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser.  É interessante observar que seu sentido mais rico é aquele do verbo reflexivo, como que indicando que é uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito. Nesta linha, afasta-se de alguns de seus cognatos, por incompletude, como informar, reformar e repudia outros por total incompatibilidade, como conformar, deformar. Converge apenas com transformar. (SEVERINO, 2006, p. 2 ).

 

    Ecos kantianos? Talvez, nesta e em outras citações. Nas anteriores, atribui um grande peso à dimensão subjetiva entendida como a tomada de consciência que exige o desenvolvimento de sensibilidades que a constituem: a sensibilidade epistêmica, a sensibilidade aos valores morais (consciência ética), a sensibilidade aos valores estéticos (consciência estética) e a sensibilidade aos valores políticos (consciência social). Nesta última aponta o devir cultural como o devir humanizador do homem e insiste na riqueza do verbo reflexivo (dar-se um ser) que é o que melhor indica o que é formação humana: uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito, ainda que numa relação antagônica e complementar com a cultura ou com a sociedade.

 

Minha idéia de formação é, pois aquela do alcance de um modo de ser, mediante um devir, modo de ser que se caracterizaria por uma qualidade  existencial marcada por um máximo possível de emancipação, pela condição de sujeito autônomo. Uma situação de plena humanidade. A educação  não é apenas um processo institucional e instrucional, seu lado visível, mas fundamentalmente um investimento formativo do humano, seja na particularidade da relação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva. (SEVERINO, 2006, p. 2).

 

   Kant dirá em Antropologia de um ponto de vista pragmático (2006) que “para indicar a classe do ser humano no sistema da natureza viva e assim o caracterizar, nada mais nos resta a não ser afirmar que ele tem um caráter que ele mesmo cria para si enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo os fins que ele mesmo assume.” (KANT, 2006, p. 216). Há uma ênfase no indivíduo, ou no sujeito, que parece existir também, em passagens de Severino como nesta: “a educação é então uma atividade, uma prática mediante a qual buscamos aprender a praticar essa subjetividade e encontrar aí as referências para a nossa vida, para as nossas ações que constituem de fato nossa existência real”. (2002, p. 186). É nessa existência real que há a necessidade da formação das sensibilidades acima referidas.

   Há, porém, que retomar e registrar as passagens tanto de Kant quanto de Severino, relativas ao peso do social na constituição desse sujeito humano, já mencionadas acima, bem como na sua formação: isto é, no direcionamento da sua constituição propriamente humana.

   E mais: na perspectiva de Severino, uma tal formação não se dá sem a contribuição da formação filosófica: “É por tudo isso que não pode haver educação, verdadeiramente formativa, sem a participação, sem o exercício e o cultivo da filosofia em todos os momentos da formação das pessoas.” (idem, p. 187). “... pois, o que se tem em mente é justamente ajudar a criança a se apropriar de conceitos e valores, a praticar seu pensamento, no sentido mesmo de exercer sua subjetividade lógica, ética e estética. E isso é essencialmente formativo.” (idem, p. 189).

   É essencialmente formativo na direção de uma liberdade situada historicamente, ainda que o termo formação possa carregar a idéia de conformação. Morin (2002) dirá que “o termo “formação”, com suas conotações de moldagem e conformação, tem o defeito de ignorar que a missão do didatismo é encorajar o autodidatismo, despertando, provocando, favorecendo a autonomia do espírito.” (p. 10-11). Por didatismo ele entende o processo de ensino que deve caminhar na direção do aprender por si mesmo: claro, porém, sempre nas relações com os outros. Nosella (2004), comentando idéias de Gramsci sobre a escola e o ensino indica que, para o pensador italiano, a liberdade é “a essência do moderno trabalho industrial e de sua ciência” (p. 186). Mas alerta que ela “não é resultado espontâneo da evolução; deve ser estudada, compreendida, resgatada, concretizada e ensinada: por isso, sua conquista é o objetivo último da escola de Gramsci.” (idem, p. 186). E diz mais, numa direção que pode chamar a atenção para o aspecto da formação que não seja o da pura conformação e sim o da intervenção educativa que pode auxiliar as gerações novas a buscarem os caminhos de sua humanização numa liberdade situada historicamente, portanto, nos limites de suas possibilidades objetivas.

 

Nem receia ele (Gramsci) violentar essa liberdade, quando exige (afetuosamente) o uso da disciplina para vencer os instintos e ensinar às crianças o automatismo da cultura moderna. Ao contrário, sabe que, assim fazendo, o professor defende a liberdade do aluno-criança que só através daqueles automatismos poderá mais plenamente exercitar sua liberdade historicamente situada. (NOSELLA, 2004, p. 186).

 

   Kant não deixa de se colocar esta questão da relação entre liberdade e disciplinamento no processo formativo. Diz ele: “Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é necessário! Mas, de que modo cultivar a liberdade?” (KANT, 1996, p. 34). A liberdade, a autonomia, é a grande meta formativa do processo educacional para Kant. Só que uma liberdade corretamente dirigida. Esta liberdade corretamente dirigida forma-se não mecanicamente, mas no embate entre os mais diversos desejos e tendências e as exigências sociais.

 

É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem esta condição não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar a sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente. (KANT, 1996, p. 34).

 

   O papel da sociedade e da cultura na formação aí está de alguma maneira posto. Tanto como espaço de crescimento humano, pois sem ela os indivíduos tornam-se brutos, quanto como indicadora de limites, aqui considerados necessários. Formadora, portanto nos dois sentidos: no sentido de oferecer elementos de crescimento e no sentido de conformação a certas medidas. Medidas do humano. Mas seria isso mesmo?  O que pensar face à idéia de ensino (didatismo) de Morin  ou de ou de automatismos da cultura moderna na fala de Nosella? Ou face às idéias de constrangimento e submissão de Kant?

 

Considerações nunca finais.

   Para esses pensadores o ensino deve ser formativo não na medida em que “conforma” ou molda, mas no sentido em que indica uma trilha de cultura humana já percorrida e que deve abrir para as possibilidades de novas trilhas. Aí a idéia de formação carrega o sentido de fazer-se, de construir-se nas e a  partir das relações sociais já dadas e em processo. Em devir. Mas eles trabalham, também, com as idéias ligadas à conformação. Nada simples e fácil. Na verdade complexo.

   Flávio Di Giorgi apresenta uma metáfora interessante sobre os dois papéis da cultura no processo de formação humana. Tanto o papel de “conformação” ou de estabelecedora de limites, quanto o papel de indicadora e possibilitadora de trilhas ou de trampolim de humanização. Indica também o papel do filosofar nesse processo formativo. A metáfora é a do banho. Diz ele que as diversas agências de socialização funcionam para os indivíduos como quem deu o primeiro banho. Mas, diz ele,

 

Mais importante talvez que o primeiro banho de água, foi o banho que o tornou Homem, isto é, o banho no universo do símbolo. Isto é, o banho da cultura, e de que nós permanecemos perpetuamente úmidos, que toalha nenhuma enxuga, e se enxugados reverteríamos à mera biologia que nos anularia como seres humanos. Isto é, nós somos seres humanos porque fomos banhados pela cultura. (DI GIORGI, 1980, p. 75)

 

   Os dizeres podem ser reportados a falas de Kant, de Morin e de Severino postas anteriormente relativas à humanização dos seres humanos na cultura, bem como a falas de Marx e Engels. Dizeres outros de Di Giorgi fazem eco, também, ao problema da relação da liberdade humana com conformação que a cultura gera.

 

Bem, mas a cultura, este banho, evidentemente, é um banho que de certa forma nos serviu de trampolim para constituir o homem como criador de sua própria realidade pessoal, como ela é, mas serve também de jaula porque toda cultura é uma repressão que nos limita como limitou até agora. Então, todos nós temos necessidade de, se não enxugar este banho, o que é impossível, pelo menos fazer algumas observações, ver a temperatura da água, a qualidade do sabão, a força de esfregação, isto é, nós temos que chegar a fazer a crítica da cultura. (idem, p. 75-76).

   Tarefa difícil reconhece o autor, mas necessária para que o processo de formação humana seja um processo de fazer-se, de dar-se um ser  no âmbito do devir cultural como o devir humanizador do homem, com já dito antes. Pois que este é o caminho que melhor indica o que é formação humana: uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito, ainda que numa relação antagônica e complementar com a cultura ou com a sociedade, conforme também já afirmado anteriormente.

   Para esta tarefa difícil e necessária, Di Giorgi aponta o papel da Filosofia:

 

Esta é uma tarefa impossível de se realizar na pura empiria do viver, desarmado. É preciso, então, um recurso que na sua culminação final, evidentemente, seja racional, com todas as limitações que este filtro tem, e que, afinal, é o único filtro que traduz o vivido e faz o feed back do pensar e do viver. Então, em outras palavras, é necessário filosofar para exercer a crítica cultural neste sentido pleno. (1980, p. 77 – Itálico no original.).

 

    Formação humana é tema, por diversas razões, da Filosofia e, em especial da Filosofia da Educação. O empreendimento aqui iniciado é um convite para continuar a filosofar a respeito. Um convite aos autores do texto e um convite aos que quiserem e puderem ajudar. No momento histórico em que vivemos talvez seja esse um importante desafio para a educação que deve poder contar com o papel reflexivo e crítico da Filosofia.

 

 

Referências Bibliográficas

 

DI GIORGI, F. V. Por que filosofar? In: Cadernos PUC n.1: Filosofia. São Paulo: EDUC: Cortez Editora, 1980, p. 79-80.

KANT, I. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba, SP: Editora Unimep, 1996.

__________ Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. Cecília Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. [I- Feurbach]. 2ª ed. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. Trad. Roberto Leal Ferreira e Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1994

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina.  7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

__________ O Metodo 5. 3ª. ed. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulinas, 2005a.

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[1]   O tradutor informa que direcionamento, professor e governante são traduções, respectivamente, dos seguintes termos no original: anfuerung, informator e hofmeister